Era uma vez um povo
que vivia em um mar de possibilidades...
Neste mar, este povo
foi lançado sem saber nadar bem e sem rumo que os orientasse. De repente, eles
encontraram uma embarcação. Ela foi a “salvação” que procuravam, já que eles
nadavam sem rumo e sob o risco de se afogarem. Subiram à embarcação e sentiram-se
aliviados e protegidos, porque com eles seguiam outras pessoas que também
subiram à mesma embarcação para salvarem-se.
Era confortante e
seguro estar junto com outros que buscavam o mesmo destino que era a “terra
firme”. A “terra firme” parecia uma promessa distante, que nunca haviam visto,
mas que sentiam que existia e pela qual perseveravam. Então seguiram todos no
mesmo barco por tempos e tempos.
Este barco, que os
pareceu maravilhoso, grande e portentoso, agora era o ambiente comum. Passado o
deslumbramento, assim como passa o deslumbramento das paixões, deram-se conta
de que não se trata de uma embarcação tão segura assim. Mais que isso, ela
possuía muitas falhas em seu casco, muitas brechas que tornavam lento o seu
navegar e incerto o seu itinerário.
Aos poucos, alguns
deles começaram a mergulhar no mar de vez em quando, a fazer rápidas excursões
para fora da embarcação e aprender a nadar com agilidade. Outros mais medrosos
preferiam não arriscar estes nados audazes e permaneciam na segurança da embarcação,
ainda que ela não fosse tão segura assim.
Os que habitualmente
pulavam para fora do barco, gradualmente adquiriram a capacidade de nadar
habilmente e às vezes era monótono ficarem restritos ao barco, principalmente
quando se conseguia nadar mais rápido que o grande e pesado navio. O barco
antes nadava com mais agilidade, mas agora ele estava sobrecarregado de
náufragos errantes e acomodados, que se recusam a fazer sua manutenção.
Os náufragos errantes
fizeram regras e políticas de como viver dentro do grande e pesado barco, e
aquele foi se tornando um lugar insuportável, mas os tripulantes, ou aqueles
que se elegeram tripulantes, disseram que o grande barco é o único meio de
chegar à “terra firme” e que para os proteger, a partir de então, todos estariam
proibidos de fazer excursões de natação ao mar.
– O mar – diziam os
tripulantes da nau – é um lugar perigoso e cheio de surpresas, é preciso que
nos protejamos no grande barco.
Aqueles que
costumavam nadar se sentiam presos e pesados. Gostavam dos amigos que fizeram
no barco, mesmo daqueles que tinham medo de aprender a nadar e por eles também
permaneciam no barco. O pior foi que, ao observarem o barco por fora, os
nadadores viam que a maresia carcomia seu casco e que mais cedo ou mais tarde
ele naufragaria, lançando todos ao mar. E agora? O que seria dos amigos que não
sabiam nadar? Afogar-se-iam ou seriam devorados pelos animais perigosos? Será
que encontraríamos a “terra firme” antes de o grande barco naufragar?
Ah...! A “terra
firme” parecia uma promessa tão distante... Para todos os lados só víamos o
vazio desolador das águas sem fim e depois de todo esse tempo não parecíamos
estar perto. Nem sequer tínhamos certeza se nossos instrumentos de navegação
eram precisos. E se estivéssemos navegando em círculos?
Então um dia,
corajosamente, um grupo de nadadores de vanguarda decidiu abandonar o barco.
Eles já estavam muito treinados, conseguiam nadar bem mais rápido que o barco e
sem se cansar. Já estavam preparados para explorar outros rumos adiante e tentar
salvar aqueles que ficaram no barco antes que ele naufragasse.
Os nadadores de
vanguarda também não suportavam mais viver com as mesquinharias dos que viviam
no barco; as disputas mesquinhas de poder, os simulacros e hipocrisias, as
questões menores. O pior era que os tripulantes, desfrutando de condição cômoda
e privilegiada, pareciam não se importar mais em atingir a “terra firme”. Eles
também já tinham, sem se dar conta, perdido a esperança de chegar a “terra
firme” e, por outro lado, sabiam que se chegassem lá, todas as regras, leis e
hierarquias perderiam o sentido. Uma vez na “terra firme”, não existiriam mais
cargos e poder, todos estariam livres da vida no barco. E os demais que viviam
no barco, tinham medo de nadar e se afogar e viviam infelizes deixando que o
barco decidisse seu próprio rumo, pois mesmo que o barco não levasse a lugar
nenhum, pelo menos eles estariam todos juntos e morreriam todos juntos. Nada
poderia ser pior que estar sozinho na imensidão do mar vazio, as pessoas
preferem a morte à solidão.
Por isso, os
tripulantes do grande barco chamaram os nadadores de vanguarda de desertores e
hereges. Mas os nadadores não se importavam mais com o que pensavam os
tripulantes. Não foi fácil para os nadadores deixarem o navio que lhes serviu de
salvação, eles se lembraram de quando estavam perdidos no mar, fracos e sem mal
saber nadar e o navio apareceu para lhes oferecer apoio e fortalecimento. Mas
agora que estavam mais fortes e independentes podiam seguir seu caminho, mesmo
deixando para trás aqueles que amavam.
Os nadadores de
vanguarda saíram mar adentro, nadando alegremente por mares então
desconhecidos. Ao atravessarem os limites do horizonte, ao atravessarem
tempestades e escaparem de animais perigosos, depois de se sentirem perdidos e sozinhos,
eles oraram ao deus da “terra firme” para que dessem alguma solução, para que
pudessem voltar a tempo de salvar aqueles que estavam com medo no grande barco
sem acreditar que ele naufragaria lançando todos ao mar.
Eis que então
apareceu uma bela criatura marinha. Ela parecia humana, mas era muito mais bela
que as criaturas humanas. Seu corpo brilhava e ela podia nadar com a agilidade
que nenhum dos nadadores de vanguarda conseguia nadar. E então um dos nadadores
perguntou:
- Que tipo de
criatura é você? E como consegue viver sem uma embarcação ou longe da “terra
firme”?
- Sou uma criatura
igual a você, mas vim de outra embarcação mais antiga. Eu e meus companheiros
já deixamos nosso barco há muitos milênios. Venham comigo e eu vos mostrarei.
Aquele ente divino
conduziu os nadadores para conhecerem outros entes parecidos com ele. Os
nadadores descobriram que eles eram muito mais antigos que seu grupo e estavam
muito mais adaptados à água. Eles podiam viver dentro e fora d’água e guardavam
muitas estórias de outros povos ainda mais antigos que eles, que dominavam
todos os mares. Os nadadores de vanguarda descobriram que aquelas criaturas
eram diferentes porque haviam se adaptado à vida no mar, viviam no mar como se
fosse a “terra firme”, estavam a vontade e felizes.
Naquele momento um
dos nadadores de vanguarda perguntou:
- Para que lado está
a “terra firme”? Precisamos saber para salvar nossos semelhantes que vivem em
uma embarcação. Logo a maresia corroerá a embarcação e eles serão lançados ao
mar. Precisamos conduzir o navio à “terra firme” antes que o pior aconteça.
E a resposta que os
nadadores receberam deixou-os estupefatos. A criatura que os recebeu lhes disse
com pesar e voz amena:
- Não existe “terra
firme” neste planeta.
- O que você está
dizendo? Perguntou um dos nadadores.
- Há milênios que nós
nadamos todos os mares deste planeta, nossos antepassados já mapearam todos os
recantos e podemos assegurar que este é o planeta das águas. Não existe “terra
firme”!
E agora? Pensaram os
nadadores de vanguarda. Será o fim de nosso povo? Mas a criatura bondosa pediu
que eles a acompanhassem e os levou ao grande salão dos espelhos das criaturas
aquáticas. Diante do espelho cada nadador pode contemplar que havia mudado suas
formas e que agora se pareciam mais com as criaturas aquáticas do que com
aqueles que viviam no barco. Haviam se adaptado!
- Eis a resposta!,
disse a criatura. – Aqui é “terra firme”, um lugar que só existe no terreno dos
nossos corações. Pouco importa estar sozinho no mar ou numa embarcação, tudo é
e não é “terra firme”, depende apenas de como você se sente. No passado também
tivemos que abandonar nossos barcos para buscar um lugar seguro. Nunca tínhamos
visto “terra firme”, este era um anseio de nossos corações, e se nós
ansiávamos, então acreditávamos que deveria existir. E de fato existe, mas não
da maneira que esperávamos.
- E na sua época
alguns se recusaram a aprender a nadar? Perguntou um nadador.
- Sim! E estes são os
vossos antepassados. Continuam criando embarcações onde são infelizes.
- Mas porque existem
as embarcações?
- Existem porque
vocês precisam delas. Ainda não se reconheceram como seres aquáticos, ainda não
aprenderam a ser solidários se não forem obrigados a viverem juntos em uma
mesma embarcação. As embarcações são necessárias enquanto ainda somos crianças
e para termos a sensação de segurança necessária para aprender a nadar. Somos
como um pássaro que precisa de seu ninho nas primeiras semanas de vida, mas se
nos recusamos a voar, somos lançados de cima da árvore. Assim também, seus
companheiros serão lançados ao mar, se continuarem a se recusar a aprender a
nadar, respondeu a criatura.
- E o que devemos
fazer?, perguntaram os nadadores que agora se pareciam com as criaturas
aquáticas.
- Vocês chegaram até
aqui por merecimento. Não precisam voltar se não quiserem, mas se amarem os
seus de verdade, como nós nos amamos, vocês retornarão para ajudar àqueles que
tem medo. “Terra firme” já está dentro de vocês. Não importa se o navio
naufraga ou continua a perambular, o que importa são as pessoas que estão
dentro dele. Não é pecado sair do navio, pecado é não amar. Porque quem tem
“terra firme” em seu coração ama incondicionalmente, ainda que seja
incompreendido e injuriado. Voltem e falem a verdade para os que estão no
navio, falem onde encontrar de fato “terra firme” e que todas as embarcações
serão um dia corroídas pelo tempo e pela maresia. Nada restará! Só estas
palavras permanecerão. O navio ainda oferece algumas vantagens, é uma estrutura
interessante onde as pessoas procuram abrigo e rumo. Se elas estão ali, é porque
procuram ou procuraram por “terra firme”. Pode ser que o ambiente do navio
tenha corroído também a esperança deles, mas não deixem que morra a esperança.
Não liguem para os tripulantes fanáticos que bravejam acusando-os de
desertores. Eles são mais dignos de pena que qualquer outro que está no navio.
Não é por eles que vocês ficarão, estes tripulantes serão todos lançados ao mar
e serão os primeiros a se afogarem. Usem a estrutura do navio para reavivar a
esperança e conduzir com amor os seus companheiros para pequenas excursões de
natação. Um dia eles também farão viagens mais audazes e descobrirão a verdade.
O pessimista senta e reclama das rachaduras no casco do navio. No fundo ele
ainda está ressentido porque o navio não é o que ele queria que fosse. Ele
sonhava viajar num transatlântico seguro e tranqüilamente, mas as embarcações
são feitas imperfeitas justamente para que pereçam e sejamos lançados ao mar.
Não devemos nos ressentir pelo navio precário. O navio pouco importa para quem
se tornou uma criatura do mar. O navio é uma instância transitória mas que um
dia será dispensável, a diferença é que estas embarcações são caminhos para nós
mesmos e não para uma terra prometida. Se seu povo tem navios é porque precisa
de navios, então usem os navios para que eles aprendam a nadar. Não se
preocupem com os mais renitentes, eles serão lançados inevitavelmente ao mar.
Vocês convidarão a muitos, mas poucos estarão dispostos a nadar por si mesmos.
Depois destas
palavras, os nadadores voltaram ao barco para ajudar aqueles que lá ficaram.
Como havia sido previsto, eles foram desacreditados, injuriados e acusados de
heresia. Quando o barco afundou escaparam aqueles que sabiam nadar e quando a
tragédia acontecia, os tripulantes agarravam-se ao navio recusando-se a nadar e
gritavam para os que pulavam ao mar: - Hereges! Hereges! Hereges! E sucumbiram
porque se recusavam a se libertar do navio.
(Autor desconhecido)