O que é Amor
Próprio?
O amor próprio é
o amor que as pessoas têm por si mesmas. Muitas vezes as pessoas, por causa de
fraquezas antigas, de crises mais recentes, não conseguem defender seus
interesses para satisfazer suas necessidades. É um grande tema da
psicologia e da psicanálise, já que faz parte do cotidiano dos profissionais
destas áreas.
Para ter amor
próprio, não significa que a pessoa deverá ter sempre seus desejos satisfeitos,
para gostar de si mesmo, ser egoísta, pisar nos outros. O amor próprio faz com
que as pessoas ajam positivamente, procurem evitar pensar no passado, quando há
tristezas ou mágoas, que procurem sempre lembrar que foi mais uma experiência
para poder evoluir, procurando tirar proveito daqueles acontecimentos.
Quem se ama de
verdade, procura possuir controle emocional, procura compreender as pessoas,
estar sempre, ou a maior parte do tempo, de bem com a vida e esquece a
opinião alheia, não guarda raiva, rancor, está sempre disposto a perdoar e têm
coragem, confiança e segurança para recomeçar.
“Algumas pessoas transferem para os outros o poder de
ser feliz e o controle de decisões importantes de suas vidas. Não seria
ausência de amor-próprio?” (por Eugenio Mussak)
Lembro-me bem. Eu
praticava medicina e estava em meu consultório já no fim de mais uma jornada de
queixas, diagnósticos, esperanças. Ela entrou, sorriu timidamente em resposta
às minhas palavras de boasvindas e sentou-se depositando na cadeira ao lado sua
bolsa e seu casaco. Esse é o momento em que o médico pergunta algo do tipo:
“Então, o que posso fazer pela senhora?”, ou “Agora me diga o que a traz aqui”.
Foi o que fiz, para então ouvir uma resposta desconcertante: “Estou aqui porque
descobri que estou ‘dormindo com o inimigo’ e preciso de sua ajuda”.
Como havia passado recentemente um filme com esse nome, em que uma mulher era
tiranizada pelo marido, pensei, no primeiro momento, que ela estava com
problemas em seu casamento e, nesse caso, ela deveria ser atendida por um
psicólogo de casais, ou quem sabe por um advogado, e não por um médico
fisiologista, que cuida do corpo, ainda que não desdenhe a influência da mente.
Ao fazer um comentário nessa linha, a jovem mulher à minha frente argumentou:
“O senhor não entendeu, doutor. Eu sou solteira. Quando digo que estou dormindo
com o inimigo é porque durmo sozinha, e meu inimigo sou eu mesma. À noite penso
em mim e sinto o quanto me detesto”.
Ao perceber que estava diante de um caso de grave ausência de autoestima,
voltei a insistir que ela precisava de apoio psicológico, ao que ela respondeu
que sabia disso, que estava recebendo atenção de uma psicóloga, e que tinha
sido exatamente essa psicóloga que a havia encaminhado para mim, na esperança
de que algum investimento em seu corpo a ajudasse a fazer as pazes consigo
mesma.
Sim, eu podia ajudar minha paciente a emagrecer, melhorar a postura, tornar-se
mais esbelta, através da incorporação de novos hábitos, com exercícios físicos
e mudanças alimentares. Mas não seria isso que lhe daria auto-estima, ponderei
para mim mesmo. Ela só entraria em um processo de se cuidar se seu amor-próprio
fosse o precursor. Em outras palavras, cuidar do corpo requer auto-estima, pois
só cuidamos de quem gostamos. A paciente, ao querer afinar a silhueta para
sentir-se mais feliz, estava na verdade querendo garantir a aprovação dos
outros. Eis o engano, comum, que leva uma pessoa a depender da outra para
gostar de si mesma.
É claro que ajudei minha paciente, mas o tratamento não foi exatamente como ela
esperava. Não houve pílulas milagrosas nem dietas redentoras. Houve, sim, muito
papo de conscientização, muito exercício de auto-apreciação e uma conversa
séria sobre seus planos. Como manda o protocolo, essa abordagem contou com a
cumplicidade de sua terapeuta, e só ocorreu depois de afastadas doenças e
causas físicas para seu excesso de peso. E a mágica aconteceu, mas só teve
início quando falamos sobre o projeto de vida e ficou claro que não fazemos
projetos comuns com alguém de quem não gostamos. Ao perceber que ela seria sua
própria companheira de viagem, concordou em transformar-se em uma companhia
melhor, prazerosa, mais “leve”, no sentido humano de ser.
O que é a auto-estima?
Não faltam definições, todas simples demais, como “auto-estima é capacidade de
sentir prazer em sua própria companhia”. Não há erros nessas definições, mas
elas deixam a desejar, especialmente aos mais ciosos de lógica e bom senso.
Ainda bem que existe a psicologia, que, em nosso socorro, explica que
auto-estima é percepção lúcida de três fatores: da capacidade de enfrentar os
desafios da vida, da aceitação das outras pessoas e do direito de ser feliz.
Dos três, o direito de ser feliz é o mais intenso, pois abrange os outros dois
fatores. Somos felizes quando nos sentimos seguros em relação às dificuldades
naturais da vida e quando mantemos com as outras pessoas relações harmônicas e
construtivas. De fato, a relação da auto-estima com a felicidade parece ser a
mais consistente, gerando uma espécie de sistema que se auto-alimenta. A
auto-estima saudável garante acesso à felicidade e a felicidade permite a
instalação de uma boa auto-estima.
Entretanto, em nossa cultura, há forte tendência à valorização da opinião do
outro. Transferimos, com muita freqüência, o poder de construção de nossa
auto-estima para as pessoas que nos rodeiam e para as personalidades que
admiramos. Como foi dito acima, a relação saudável e prazerosa com os outros
faz parte do tripé que sustenta a auto-estima, mas não é, como às vezes parece
ser, a única nem a principal responsável por sua construção.
Como a auto-estima e a felicidade costumam caminhar juntas, vivem se
encontrando na literatura universal. No livro O Vermelho e o Negro, de Stendhal
(na verdade, Marie-Henri Beyle, escritor francês do século 19, cuja principal
característica é desnudar o espírito humano com frieza e precisão), há um bom
exemplo dessa dobradinha, trafegando pelas dualidades humanas. O próprio título
remete aos extremos – vermelho e negro estariam representando o bem e o mal, o
amor e o ódio, o ser e o não ser. Seu personagem central, Julien Sorel, é filho
de um carpinteiro rude, mas dotado de sensibilidade artística e espírito
refinado, que anseia viver com a aristocracia. Toda a trama é baseada na
necessidade de ser aceito, de ser o que não é e de negar suas origens.
A felicidade de Julien passava pela aceitação dos outros, aqueles que ele
admirava, que o toleravam, mas não o reconheciam como um igual. Belo e
sensível, torna-se amante da senhora de Rênal, esposa de seu patrão, e é feliz
por ter sido aceito em um leito nobre. Mas, quando um dos filhos da senhora de
Rênal adoece, esta acredita que se trata de um castigo divino, pondo fim ao
romance. Duro golpe na auto-estima de Julien – nem Deus o aceita como ele
deseja ser. Em busca da realização, parte para outros lugares, aprimora sua
cultura, faz novos amigos e conhece Mathilde, filha de outro nobre. Ele a
engravida, e o pai concorda com o casamento desde que Julien mude de nome, para
parecer o que não é – um aristocrata.
O casamento, entretanto, é frustrado por interferência da antiga amante, que
ainda o deseja. Ele tenta então matá-la, é preso e a tragédia se completa com
sua condenação à morte. Para surpresa de todos, e dele mesmo, Julien não só
aceita como deseja a morte, e isso se deve ao fato de que ele percebeu que
jamais conseguiria ser o que desejava, ou seja, não ser ele mesmo. A
infelicidade e a tragédia desse personagem da literatura representam o anseio
daqueles que buscam o reconhecimento do outro para construir sua própria
aceitação.
O erro não está em respeitar e até desejar a aceitação do outro, e sim em negar
seu direito e seu poder de criar uma identidade singular, baseada em princípios
próprios e alimentada por causas pessoais. Viktor Frankl, o psicólogo que criou
a logoterapia (psicoterapia baseada na busca do sentido) a partir de sua
experiência em um campo de concentração, insiste na quebra da visão pendular
entre a auto-aceitação e a aceitação do outro. Segundo ele, se você tende a
basear sua imagem na opinião alheia, irá se alienar e frustrar para sempre a
possibilidade de construir uma personalidade estável. E se você opta por
ignorar o outro e construir sua imagem baseada apenas no que você acha certo,
tende a se isolar e criar um comportamento psicótico, em que o outro não tem vez
nem valor.
O que Frankl propõe é que você saia do movimento pendular para os lados e crie
um movimento para cima, buscando uma causa, uma razão maior que justifique não
só sua felicidade, mas também sua existência. Quando estamos ligados a razões
superiores, como uma carreira sólida, uma obra social ou um projeto, que pode
ser uma viagem, uma família, um livro a ser escrito ou algo assim, temos os
elementos de que necessitamos para construir uma autoestima bem sustentada e
independente.
Espelho, espelho meu…
Entretanto, negar o papel do outro na construção de nossa auto-imagem não é uma
coisa que se deva fazer. A psicóloga Dorothy Briggs dedicou-se a estudar
auto-estima, especialmente depois que foi mãe. É dela o ótimo livro A
Auto-Estima de Seu Filho (Martins Fontes), um estudo da influência dos pais e,
depois, de outras pessoas, a começar pelas primeiras professoras e coleguinhas,
em nossa vida auto-afetiva.
Ela propõe uma reflexão sobre o que chama de “fenômeno dos espelhos”, em que
pergunta aos pais se eles já se perceberam como espelhos psicológicos que seus
filhos usam para construir suas próprias identidades. Sim, os pais são os
primeiros referenciais de que as crianças se valem para se sentirem vivas,
participantes ativas deste mundo que elas começam a habitar. As crianças se
sentirão bonitas, fortes, amadas, corajosas a partir da imagem que o espelho
lhes devolva. A construção de uma identidade positiva depende, sem dúvida, de
experiências positivas na vida, e essas experiências são compartilhadas.
O fenômeno dos espelhos se amplia na medida em que cresce o mundo ao nosso
redor, multiplicando as relações e aumentando os feedbacks. E o problema é que
o mundo às vezes parece aquelas salas de espelhos que havia nos parques de
diversões. Você se via imensamente gordo em um espelho, para verse magricela e
comprido no próximo. Essa situação é cômica porque conseguimos rir de nós
mesmos, ou melhor, da imagem distorcida que os espelhos nos devolvem. Rimos
porque sabemos que nada daquilo é verdade, nenhuma imagem corresponde à
realidade. Conhecemos nossa verdadeira imagem e ela não estava em qualquer
daquelas mentirosas superfícies polidas.
E na vida diária, também é assim? Quanto você confia, ou desconfia, do que os
espelhos da vida lhe dizem? E quanto essas imagens refletidas são importantes
para você? Respostas que só a maturidade é capaz de dar. É claro que os
espelhos são importantes, mas, convenhamos, não é isso que importa. O que
importa mesmo é o que você fará com o que os espelhos lhe disserem.
Desejar ser o que não é ou, pior, desejar não ser o que é equivale a negar a si
mesmo, mentir para a alma, anular sua essência. Como o pobre do Julien Sorel,
que tentou matar a única mulher que amava para tentar ficar com a que não
amava, mas queria amar, porque achava que assim poderia ser o que não era, mas
gostaria de ser. Sermos o que somos verdadeiramente é o único caminho para
chegarmos a ser o que desejamos intensamente.
(Terceira e
derradeira parte da palestra da Juliana)
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